Blog do Ronaldo Evangelista

zen baiano
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Ronaldo Evangelista

João Gilberto um dia chegou direto dos Estados Unidos para Salvador, pegou um táxi e foi até a casa de um conhecido. Quando seu amigo veio à porta, João pediu-lhe: ''Me leva até Juazeiro?'' O conhecido, ainda meio acordando, não entendeu: ''Como? Juazeiro?'' ''Não, não, deixe que eu vou de táxi'', interrompeu João, ternura e feitiço. ''É que conversando com você a viagem seria mais agradável''. O rapaz não resistiu: ''Espere que eu vou vestir uma roupa''. João: ''Vamos assim mesmo, não precisa levar mala.''

Pegaram a estrada e foram encontrar a família de João, verdadeira festa. Todos atônitos com a presença de Joãozinho ali de surpresa. Abraçando sua mãe, pede: ''Mamãe, a senhora tem aquele cafezinho que só existe aqui em casa?'' Ela mandou vir o café e eles tomaram. João deu mais um abraço apertado na mãe e despediu-se: ''O cafezinho foi demais, outro dia venho para outro''. Chamou o amigo, entraram no carro, rumaram para o aeroporto da capital e voltou para os States.

A deliciosa história de João vir da América da Norte para tomar um cafezinho com sua mãe foi contada por Luiz Galvão, dos Novos Baianos, e é apenas uma do enorme anedotário que envolve João Gilberto. O folclore sempre nasce da admiração máxima e a arte de João conquista admiradores como mantras zen.

O jornalista paranaense Aramis Millarch [1943-1992] lembrou de história sobre quando Elba Ramalho ligou a João e conversaram longamente, até ele convidá-la a uma visita. Antes de desligarem, João fez um pedido. ''Elbinha, me faça um favor: traga um baralho, destes incrementados, com desenhos diferentes''.

Aramis continua:

Radiante, Elba percorreu meio Rio de Janeiro até encontrar um baralho que julgava fosse o desejado por João. Eufórica, foi ao apart-hotel, subiu ao apartamento e apertou a campainha. Uma, duas, três vezes. Finalmente, a porta se entreabriu e João perguntou: – ''É você, Elbinha? Trouxe o baralho?'' Elba respondeu que sim. João pediu então para ela passar o baralho. Embora estranhando, ela lhe deu o baralho. A porta se fechou e Elba ficou – ao menos aquela vez – sem ver seu ídolo.

Em cena do documentário Pedrinha de Aruanda, de Andrucha Waddington, Maria Bethânia conta outra famosa de João: ele dirige de ouvido. As lendas contam sobre vários cruzamentos furados em pleno farol vermelho e de repente uma parada brusca em um verde – para um carro cruzar a toda. Ouvido perfeito.

Outro mito recente se criou em torno da persona online de João, presente (ou não) no Facebook. É ele? Não é ele? Impostores profissionais e tão obsessivos quanto a vítima de impostura? Jacques Morelenbaum e Daniel Jobim tem certeza que é ele. Danilo Caymmi Também. Miúcha, ex-mulher, não tem certeza. Já o empresário de João, Otávio Terceiro, quer mandar prender o farsante. Mais da novela nessa matéria da Folha e nessa d'O Globo.

João, provavelmente, segue alheio a tudo fora do universo de sua música, exilado dentro de sua arte e suas idiossincrasias. Quem analisa a relação entre a concentração constante de João Gilberto e seu isolamento radical e decorrentes mitos é Nelson Motta, trecho abaixo editado de uma fala sua no Roda Viva:

Essa vida monástica que o João vive, eu já comparei ele a um mestre zen. Você atinge um equilíbrio, uma serenidade, uma ausência de dor, uma ausência do medo, de dúvida – por muitas maneiras: arranjando flor, em várias artes zen. E o João desenvolveu isso, essa arte, essa meditação zen.

Quando ele está em casa cantando a mesma música, são mantras de quatro minutos que ele canta, canta, canta, canta. E, quando você está cantando, é o mesmo princípio da meditação: se, em algum momento sua cabeça voar um pouquinho, se você pensar ''não, mas aquela garota…”, você erra. Então, isso vai até o fim da música.

Se você errar tem que começar tudo de novo. Enquanto você está concentrado naquilo, você não está pensando em você, você não está pensando no mundo, você não está pensando em dinheiro, você não está pensando em ambição. Acho que o João tem muito essa coisa. Ele vive lá no Himalaia dele, no Leblon, naquele trigésimo andar, vendo o Rio todo, ele é zen baiano.

§Na busca de João pelo som perfeito, elemento-chave é a economia, a sutileza, a clareza de mensagem, a riqueza pela ausência de elementos, o menos-é-mais. Na vida – e na construção de seu próprio mito, humano – não pode ser diferente.
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só com a preguiça vem a paz
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Ronaldo Evangelista

Erasmo Carlos completa 70 anos hoje, em pleno movimento: lança em breve novo álbum, Sexo, produzido por Liminha.

Erasmo tem um jeito de falar as coisas, uma simplicidade profunda que é capaz de revelar o que mil rebuscamentos não dizem. Sua personalidade se destaca desde o tempo da jovem guarda até o humor sério dos 80, mas é no começo dos anos 70 que viveu seu período mais inspirado. Todos os seus discos entre 68 e 76 são picos de criatividade e a maturidade hippie da época permitia que criasse canções e arranjos sem limites, cruzando todos os universos em vários registros de emoção, sempre sensível e esperto.

Os sambinhas, desde pelo menos quando descobriu João Gilberto, nos anos 50, eram uma especialidade – mas agora vinham falando de coisas de verdade, por mais ingênuas que pudessem ser. Se Roberto continuou-se pela década de 70 apurando as composições esquema cineminha romântico, Erasmo foi descobrindo-se existencialista, contemplativo do cotidiano: Narinha, o cigarro, o coqueiro, o jornal, imposto em dia.

O ''Samba da Preguiça'', um dos muitos sambinhas feitos para amigos pela dupla Roberto/Erasmo, não é desconhecido pra quem já ouviu o álbum de 1973 do Trio Mocotó. Mas a gravação abaixo é inavaliável pelo registro intímo de voz e violão, a poucos centímetros do clima de criação. Recorte do LP História Música Informação, da Rádio Jornal do Brasil, lançado em 1972 e publicado online pelo blog Soul Spectrum. Erasmo toca em resposta ao jornalista que lhe pede uma ''coisa recente, que ainda não tenha sido gravada''. Inspiração: a preguiça que o mundo sente, porque o mundo caminha pra preguiça.


cordiais saudações
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Ronaldo Evangelista

§Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de apartamentos.

Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção. Enquando eu estiver atento, nada me acontecerá. Enquanto batiza a fogueira – tempo de espera? Pode ser – o mundo de sempre gira e o fogo rende. O pior é esperar apenas. O lado de fora é frio. O lado de fora é fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das coisas é passar por referência, continuar passando. Isso aí eu li uma vez no Pasquim.

§Isso aí eu li uma vez na coluna do Torquato Neto, Geléia Geral, publicada no jornal Última Hora, 1971.

§A imagem, recorte da mais famosa coluna de Torquato, para abençoar a estreia.

§O blog Vitrola foi criado em junho de 2001, com a simples premissa de observar ao redor pelas coisas mais legais e menos óbvias, compêndio de tudo de interessante, desde sempre com o olhar no especial. Dez anos depois, a nova casa das investigações artísticas, base de operações de textos e ideias, é aqui no UOL.

Momento de atualizar favoritos e RSSs. Valeu pelo que foi, salve o que virá.
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