Blog do Ronaldo Evangelista

Categoria : Entrevista

a apresentação perfeita de Keith Jarrett no Rio
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Ronaldo Evangelista

Fim do ano passado, liguei para Keith Jarrett, ótimo papo, e conversamos sobre o prazer do improviso, o sabor do inesperado e sobre seu mais recente disco, gravado ao vivo em apresentação no Brasil. Parte das ideias trocadas, em matéria na Folha e logo abaixo.

Abril último, o pianista Keith Jarrett, 66, veio ao Brasil para apresentações na Sala São Paulo e no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Guiado pela improvisação absoluta, somando conhecimento erudito, décadas de experiência no jazz e ultrassensibilidade musical, o show no Rio, especialmente, impressionou até ao próprio músico.

Ainda nem tinha partido do país quando percebeu que aquele tinha que ser seu próximo lançamento. Seis meses depois, Rio, o CD, já vem sendo recebido como seu álbum mais inspirado em anos. No Brasil o disco, duplo, está sendo distribuído pela gravadora Borandá.

Por telefone de sua casa em New Jersey, Estados Unidos, o músico falou sobre sua relação com música criada no momento e sua experiência no Brasil.

O senhor consegue identificar de onde surgiu a ideia de fazer apresentações completamente improvisadas?

Foi algo gradual através dos anos. Depois que gravei meu primeiro disco de piano solo, “Facing You”, no começo dos anos 70, participei de um festival e toquei canções, mas entre as canções continuei tocando, conectando as músicas. E aí fiquei mais interessado nas conexões do que nas canções e eventualmente tudo se tornou improvisado. Para mim foi como a ideia perfeita. Quando eu tinha sete anos e fazia recitais, eu tocava coisas que eu compunha – mas eu não as escrevia e tocava cada vez de um jeito. Então eu já improvisava, mas não pensava muito nisso.

É um desafio esquecer os temas e caminhos musicais com que você já tem familiaridade?

É fácil não pensar em música pra mim. Quase todo mundo tem uma ideia na mente antes de tocar, ou algo gravado, ou alguma memória, mas eu tento apagar tudo. Se estou numa cultura que tem sua própria música e apaguei tudo da minha mente, me torno conectado com a cultura. Então esse disco em particular é muito mais brasileiro que todos meus outros discos. Não por acidente, mas por osmose.

A música brasileira foi uma influência consciente enquanto tocava?

Eu estava consciente de que algumas harmonias estavam mudando porque eu estava no Brasil. Uma coisa sutil, não como se eu me tornasse outra pessoa. Mas acrescentei elementos que são parte de onde estou. Quis lembrar como o português do Brasil soa, tentei tirar algo do piano que não era exatamente música de piano, mas quase música de violão ou voz.

A primeira faixa do primeiro CD é bem abstrata, não tem nada de jazz. Mas, se você ouvir com atenção, há ritmos nela que não aparecem em nenhuma outra gravação minha. O conteúdo interno da música é formado por essas pequenas coisas que são as cores do local. Coisas que são parte da atmosfera, como a praia.

O senhor consegue identificar o que tornou a apresentação no Rio tão especial?

Eu tinha o piano e colocava o dedo em algum lugar. Depois que toquei o primeiro som ou eu criei uma prisão pra mim ou criei o começo de algo bom. Algumas das peças, especialmente no segundo CD, não soam improvisadas. O especial nesse show do Rio é que tudo foi igualmente bom, pelo menos pra mim. Não houve notas desperdiçadas. A duração de cada peça, a estrutura, o conceito, foi tudo perfeito. E não uso muito a palavra perfeito.

Quando o senhor toca, a principal busca é fazer algo completamente conectado ao momento, às pessoas, à situação?

Acho que um improvisador – não todos, mas idealmente – é alguém mais curioso com cada pequeno detalhe que é diferente naquele momento, como o som da tecla do piano, da sala, o feeling. Estas são as coisas às quais sou muito sensível.

Fui um improvisador e compositor por muitos anos, então percebi quanto mais interessante era compor e improvisar simultaneamente. Não estava mais interessado em notas escritas em um papel. Elas estão simplesmente lá e vai ser bom ou ruim, mas não vai ser uma representação do momento.

Cada surpresa, cada acidente, cada erro é precioso.

Exatamente. Na verdade, os erros são muitas vezes mais preciosos, as pequenas coisas que mostram que é tudo improvisado. Muitas vezes a audiência não se lembra a cada segundo que é tudo improvisado. Se lembrassem, estariam tão ocupados ouvindo que não tossiriam, não tirariam fotos, eles seriam parte do processo. É por isso que ainda acho que a audiência é tão importante quanto qualquer outra coisa na sala. Muito mais importante, na verdade, que qualquer outra coisa.


Lenine & o descobrimento do Brasil
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Ronaldo Evangelista

Estava ali, de bobeira na praia em Salvador, quando Amauri Gonzo me aborda: não quer entrevistar o Lenine pra +Soma? Havia visto seu show na véspera, sabia-o figura muito interessante e a oportunidade era perfeita. Como esperado, papo rico de ideias e resultado lindo, como toda a revista. Na edição 25 da +Soma e no novo portal da revista. Seguindo, a íntegra.

O novo álbum de Lenine, Chão, será lançado pela gravadora Universal no próximo dia 19 de outubro.

Um amigo tem a teoria que Lenine não é cool porque é cabeludo. Mas discordo: aquele ar hippie meio fora do tempo de seus cabelos compridos e olhar brilhante é parte essencial do charme que exerce. Um pouco como sua própria música, que faz questão de prescindir de uma definição clara de estilos, como se ao largo do zeitgeist. Se não é descolado, é justamente porque segue desviando de caminhos esperados.

Fazendo música há tempo suficiente para já ter visto algumas revoluções e vivido diferentes ondas de hype, Lenine representa uma força espontânea que, mais do que integrado ao status quo da indústria, é algo por si só que o mainstream não pôde ignorar. Paciente e dedicado, entendeu há tempos que o despreconceito estilístico e a existência artística para além das estruturas comerciais hegemônicas eram a chave para o futuro, digo presente.

A busca pelas coisas ricas e simples, a naturalidade com que recebe e apresenta ideias e o riso fácil não são muito diferente na música ou no papo, no mundo real ou no palco. Na Bahia por ocasião do festival Conexão Vivo, nos encontramos sem pressa, para falar de mais assuntos que você imaginaria caber em uma hora de conversa, tarde de domingo sob o sol e à beira do mar de Salvador.

Quanto tem na sua música de tradição de Pernambuco? Você sente que tem, desde sempre?

Eu sinto que os outros sentem que tem, mas não é intencional. Não sei em que medida entra o quê no que eu faço. Eu posso reconhecer depois de feito, mas eu sou um somatório de experiências. Dentro dessas experiências tem o que é raiz e tem o que é antena, e isso está misturado. Como, eu não sei muito bem não. Não sei em que dosagem se dá isso. Pra mim fica claro que um ouvinte médio do Brasil identifica rapidamente o quanto tem na minha música de nordestino ou de tradição. Mas quando eu tô tocando fora do Brasil isso se perde completamente. Então fica mais fácil para um estrangeiro identificar na minha música justamente o que ela não tem de brasileira. E aí eles, “porra, mas isso é meio isso ou aquilo, é meio funk, meio rock, meio sei lá”. Então eu acho que você identificar algo na obra de alguém tem a ver com a sua informação, com o seu filtro e o seu olhar. O meu processo é mais intuitivo, tem mais a ver com o que eu ouço, o que eu gosto, a minha curiosidade. E na hora que eu tô fazendo, isso de alguma maneira eu jogo pra fora. Mas não é intencional nem é um ato de pesquisa ou de resgate.

É uma coisa instintiva. Você não pensa “vou colocar isso ou aquilo”.

Quem faz resgate é salva-vida ou bombeiro. (risos)

Mas quando era mais novo você lidava com coisas típicas, ritmos tradicionais?

Sim, por causa dessa felicidade e coincidência geográfica de ter nascido naquela região portuária que durante muitos anos foi um grande pólo e que, também por ser portuária, por lá transitavam vários tipos de expressões. Acho que fica claro para quem conhece o Recife hoje entender essa diversidade. Pela história que a gente tem como cidade e como catalisador e como trânsito de várias expressões. Eu me lembro, novinho, meu pai me levando pra ver o Pastoril do Faceta, ou me levando na época do carnaval pra ver todas aquelas agremiações e tal. Algumas delas me metiam muito medo, inclusive. Eu queria distância. Mas, lógico, de alguma maneira isso fez parte. Sublinarmente entrou. E aí, quem me trouxe pra música realmente, lá pros 14, 15 anos de idade, foi o rock’n’roll, cara. Aí conscientemente. Eu sou Zeppelin. Aquele início do prog, que depois ficou cafona pra cacete. Mas ali é onde eu digo (suspiro de espanto): “Que música é essa? Que porra é essa?”

Você já tocava antes disso ou começou ali?

Lá em casa todo mundo tocava algum instrumento. Tinha essa coisa, meio ritual até, de nos finais de semana o violão rodar, cada um ter um caderninho de músicas que gostava de cantar. Isso transitava. Então, em casa, mais do que tocar a música que você gostava, você tinha que tocar a música que os outros gostavam. E isso deu uma bagagem, realmente. Mas celebrativa, eram só os encontros nos finais de semana.

Então nem dá pra achar o ponto em que a música começou na sua vida?

Acho que sempre esteve. Eu lembro quando eu quis fazer, e aí foi com o rock.

Você pensou “vou ser músico”?

Não. “Eu quero isso aqui. Que expressão é essa?” E comecei a me informar. Coincide também com o Clube da Esquina. Eu tinha essa coisa, durante muito tempo [meu único interesse] foi a música estrangeira.

Foi na mesma época que descobriu o Clube da Esquina?

Foi um pouquinho depois. Eu readquiri uma memória que não tinha. Essa memória de infância eu só readquiri quando entrei na faculdade, aos 17 anos. Porque a gente se encontrava nos diretórios pra ouvir um som e caiu um disco do Jackson do Pandeiro. Aí o cara disse: “Tu conhece?” E eu disse: “Não”. A minha memória consciente não se lembrava. E o cara botou o disco, chamado O Rei do Ritmo. E à primeira audição eu saí cantando tudo. Eu não sabia que sabia. Isso foi fundamental, porque aí eu readquiri. Fui em casa, fui ver os discos que papai ouvia, e aquilo tudo teve um sentido pra mim. E aí eu conhecia um bocado de coisa sem saber que conhecia. Isso ia do universo desde Mario Lanza e canção napolitana até, sei lá, Elizeth Cardoso, Ciro Monteiro, Luiz Gonzaga, Jackson. E toda essa bagagem eu tinha de muito novo, mas só fui readquirir depois.

Aí comecei a compor. E, de tudo o que eu não gostava na época do rock’n’roll, no Brasil me chamou atenção o Clube da Esquina. E aí contemporaneamente eu consegui acompanhar, como fã, aquele núcleo de pessoas em volta de Milton Nascimento. Fazendo uma música divina, que eu achava que era impossível fazer, que a gente não tinha tecnologia pra isso. E, realmente, Milton readquiriu uma excelência técnica que a gente tinha perdido, que a gente tinha acompanhado com a bossa nova e que teve um momento, que coincide com o punk também, em que o ruim é bom. (risos) E, porra, cara, o ruim não é bom, velho! O ruim é ruim e o bom é bom. (risos) Foi mais ou menos isso que aconteceu na minha cabeça, e eu passei a compor, a participar de alguns festivais dos cursinhos que tinham na época, em Recife. E aí eu vi a possibilidade, realmente, de trabalhar com música.

Interessante você falar do Clube da Esquina, fico imaginando como devia bater esse som de Minas lá em Pernambuco. O Milton desenvolve um som que é muito dele…

Movimento do eu sozinho. Eu acho um pecado quando se fala dos grandes movimentos que aconteceram no Brasil. Milton é um movimento! (risos) Milton é um maravilhoso movimento, que expôs tanta gente bacana, ele fez janela pra essa turma. E também teve essa excelência na produção dos discos, que até então eu não via. E aí eu acompanhei mesmo, esperava. “Vai sair disco novo de Milton”, e eu corria pra ser o primeiro, pra ouvir. E tirei tudo. E era cachorrada, porque as músicas são cachorradas! A história não é litorânea e solar. É lunar, é montanhosa, sinuosa. (risos)

Engraçado que tudo que você comentou são coisas muito únicas, sem parâmetro. O Milton é o Milton, assim como o próprio Jackson tinha aquela coisa muito própria, Led Zeppelin também.

Pontuais. E parecem até solitárias no universo, eu também acho. Por exemplo, onde se enquadra um Djavan nisso tudo? Eu não sei, é Djavan, porra. Onde se enquadra Zélia Duncan nisso tudo? É Zélia, porra! Então tem muitos solitários. O Brasil tem grandes expoentes que foram conquistando seu espaço solitariamente com uma autoralidade no fazer, uma autoralidade no compor. E a gente tá cheio de grandes exemplos disso aí.

Um país musical e um país que desenvolve criatividade.

E um país em que a música vem agregada com muita coisa, cara. Os gringos agora tão começando a perceber a profundidade da música que a gente faz. Porque durante muito tempo era só o naïf: música brasileira é gente pintada, batuque e bunda. Porra, cara… não. E o Uakti? Onde se encaixa o Uakti nisso? Então talvez eu me adeque mais a esse solitários solidários, faço parte dessa tribo. E coletivo, né. Porque é um eu sozinho coletivo. (risos) Por mais paradoxal que possa parecer.

Você falou em Jackson, imagino que Luiz Gonzaga você também tenha ouvido muito.

É, mas não só eles. Tinha trio nordestinos, Três do Nordeste, Anastácia, Dominguinhos, todo esse imaginário nordestino. Pô, o Gonzaga foi o maior artista pop, cara. Antes de existir o universo pop. Imagina que na década de 50 o cara enchia ginásios vestido de gibão de couro, se paramentava pra entrar. Quer coisa mais pop do que isso? Gonzaga é foda.

Tinha figurino.

Figurino. (risos) Muito foda. Eu sou muito fã. Foi o primeiro cara que botou foco em uma cultura supostamente nordestina. Eu digo “supostamente” porque até então não tinha parâmetros. E aí chamou a atenção das pessoas: existe uma cultura no nordeste do Brasil, especial, própria. Árabe, moura. Se perdeu no resto do Brasil e lá não, continuou aquela coisa meio árabe mesmo. Os mouros ficaram 600 anos na península ibérica. É natural, né? Veio com as barcas. Veio na época do descobrimento, naquelas naus gigantescas. Vieram um bocado de árabes, bicho. (risos)

Uma característica que eu senti no seu show foi uma coisa não exatamente metafísica, nem existencialista, mas de contemplação…

Tem. É legal você levantar isso porque realmente eu acho que existem dois focos de expressão no Brasil: uma é litorânea e a outra interiorana. A litorânea é mais solar, a interiorana é mais lunar. Acho que sou fruto dessas duas, eu faço um híbrido entre o lunar e o solar. Eu acho realmente que tenho essa coisa celebrativa e de música poderosa, mas o lúdico está muito presente em tudo que faço. A canção tá muito presente em tudo que faço. Acho que isso é uma mescla das duas expressões.

Você falou que quando compõe é uma coisa intuitiva. Mas você pensa no tipo de emoção que as canções despertam, ou isso também é um mistério?

Pra ser bem honesto, é muito egoísta essa parte. Porque eu só faço pra agradar aos que eu amo. Eu quero fazer uma canção bacana pro meu filho dizer: “Pô, pai, que canção da pesada.” Pra minha equipe que trabalha comigo dizer: “Ih, rapá!” Os meus parceiros dizerem: “Ah, eu sabia…” É simples assim. Evidentemente que eu intuo que conseguindo agradar esses meus desconfiômetros familiares, digamos assim, eu tenho uma grande possibilidade de espraiar isso e tocar nas pessoas fora desse núcleo. Mas aí quando eu toco as pessoas é com essa verdade. É uma coisa muito autêntica ali e até meio ritualizada, do coletivo que a gente consegue fazer com a banda. Então é como se fosse minha igreja mesmo. Tocar, fazer discos, isso tudo é sempre pretexto pra eu poder viajar e sair tocando pelos lugares. É meu ritual, cara. Minha religião. Eu procuro manter sempre limpo esse canal de conexão pra poder continuar com essa síndrome de Peter Pan. Cada show pra mim é como se fosse final de campeonato, sacou? É ali, tô terminando, é o campeão. (risos) Então tem uma entrega, e a gente exercita isso no grupo, na equipe. É assim, cara. Simples assim: tudo o que eu faço é só pra quem eu amo.

Como no começo da história, quando tocava pra sua família.

Como no começo da história, justamente! Por isso não mudou nada, cara! Por isso eu continuo sentindo esse prazer juvenil de subir no palco e me divertir. (risos) Minha formação, ou pelo menos como eu entendo ela, é um agregado de experiências. E o tempo todo se auto-alimenta. O tempo todo eu tô viajando, o tempo todo eu tô conhecendo pessoas novas, o tempo todo isso está sendo um estímulo pra eu continuar o tempo todo fazendo música, fazendo disco e tal. Virou um maravilhoso moto contínuo que não para. Eu não tenho descanso, porque eu gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Preciso sair do meu umbigo eventualmente, porque eu não me engano nessa coisa. Isso não cola. Continuo me perguntando três coisas: O que eu faço? Por que eu faço? Pra quem (ou pra que) eu faço? Enquanto eu tiver essas respostas, fico seguro. Faço as coisas com mais segurança, com mais excelência.

E ouso achar que minha música tem a ver com o que você faz: reportagem. Não é, não? É como se fosse uma fotografia daquele momento. É um documento histórico. A gente está construindo essa materialidade do que é o hoje com essas referências que cada um põe, com os depoimentos de cada um. E pra entender o Brasil, há que se ouvir muitos depoimentos. (risos) A gente só vai entender o que é o Brasil de hoje se a gente tiver o maior número de informações sobre quem tá fazendo o Brasil de hoje, e a gente não sabe. A gente descobriu o Boi de Parintins agora há alguns anos, e é uma cultura que já tem quase 30 anos. A gente já ouviu falar na guitarrada, mas é tão distante pra gente que a gente não sabe quem é o mestre da guitarrada. A gente não tem ideia do que seja o fandango, uma expressão de branco ali do Paraná. Isso a gente não tem noção. Então, pra conhecer o Brasil, há que se ouvir muita coisa. E cada região tá com essas pessoas instigadas, fazendo suas misturas, fazendo sua crônica. Quer entender o Brasil? Vai ouvir, cara. Tem muita gente falando do Brasil.

E tudo é brasileiro, nasce aqui.

A gente não é nada. Na famigerada carta do Caminha, só uma frase ali tinha todo sentido: “Aqui, o que se plantar vai dar”. Essa era a única verdade, o resto ele falou merda pra caralho. (risos) Mas essa é a verdade: tudo o que chega aqui ganha uma cor diferente. É solar, é porque a gente tá perto dos trópicos, perto do equador, sei lá, velho. Porque a gente é o novo mundo, porque a gente tá na puberdade.

E o novo tá sempre aí.

Novo é aquilo que foi esquecido, por isso é que a gente acha que é novo. (risos)

Engraçado que hoje em dia fala-se o tempo inteiro de uma nova geração da música brasileira. Vinte, trinta anos atrás a turma com quem você surgiu talvez tenha sido a primeira nova geração da música brasileira.

Talvez tenha sido uma primeira geração que praticava uma hibridagem, uma promiscuidade que até então não existia. Porque eram os nichos: tinha a MPB, tinha o samba, aí surge o rock, aí o sertanejo, a música romântica… são núcleos. E esses núcleos não se transitavam muito não, eram universos, ilhas, era tudo meio cada um no seu nicho. Acho que hoje em dia não existe mais isso. Existe um trânsito maravilhoso, saudável, em que todo mundo toca com todo mundo. Existe essa celebração do fazer, porra. Sacou? Só conseguir fazer já é uma grande conquista. (risos)

A sua geração foi uma espécie de primeira geração de tropicalismo aplicado.

Não. Vinte e doizinho, é tudo vinte e doizinho.

Antropofagia.

É, bicho. Hans Staden, Hans Staden. O cara que não foi comido. E, por não ter sido comido, a gente descobriu o canibalismo. E era gringo. (risos) A gente é isso. A gente não é nada, cara. E é tudo.

Quero te perguntar o que você tá ouvindo de novo.

Ah, muita coisa. Até porque ao longo do tempo vai criando essa confiança, os próprios criadores me mandam CDs, eu to sempre num débito gigantesco porque tenho uma pilha pra ouvir. E tô fazendo CD novo. E quanto tô fazendo CD, não dá pra ouvir. Acabei de masterizar o disco novo.

De estúdio? Inéditas?

É. Chão. Daqui a um mês a gente vai começar a falar dele. O disco tem algumas ousadias muito bacanas, vai dar pano pra manga pra gente conversar. Enfim… eu tava falando do quê?

De ouvir.

Ah, sim. Nesse momento que você tá criando é mais difícil ouvir, mas eu ouço sempre muito e sempre recebo muita coisa. E tem muita coisa bacana. É difícil pontuar um, dois ou três. Eu teria que ir setorialmente, regionalmente. E em cada região tem uns cinco ou seis. Não vou cometer esse pecado, cara. Mas sim, tem muita coisa bacana acontecendo. Acho que nunca democratizou-se tanto a produção a ponto de ter uma produção como essa, significativa mesmo. Lançam 70 discos mensais.

Você tenta ouvir?

Tento ouvir. Às vezes, é fogo. Já aconteceu de ter disco que eu gostei tanto que: “Porra, acabei de ouvir um disco da pesada e tal”. Eles: “Ouviu? Pô, lancei outro”. Então foi mais de um ano e meio até eu ouvir, às vezes demora. E os amigos furam a fila. “Pô, fulaninho lançou disco.” Aí, porra, fura a fila. (risos)

Quem teu seu telefone na agenda pra ligar e cobrar.

Justamente. “Eu vi o cara!” E mesmo pela amizade, pela curiosidade que muitos desses amigos me despertam mesmo. Quero ver o que estão fazendo.

Você tocou com a Tulipa em abril, no Conexão Vivo em Belo Horizonte.

A Tulipa eu já sabia do DNA dela, que é foda. (risos) A Tulipa eu acho uma artista. Eu gosto muito da Tulipa. Tulipa desenha, Tulipa é muito especial, cara. Ela tem essa amplitude na expressão. Luisa Maita foi outro disco belíssimo que eu ouvi. O Brasil é danado com mulheres. A gente sempre esteve muito bem com as mulheres.

E parece que não vai secar.

Não, só tá enriquecendo. Acho que é a água desse país, cara. Afeta as mulheres. (risos) Ou seremos um matriarcado? (risos)

Você falou em democratização e hoje em dia a indústria tá meio caída, as estruturas não são mais como eram, estão se reinventando.

Indústria? Que indústria? (risos) O que existe da indústria? As questões são muito maiores. E ninguém sabe, ninguém tem bola de cristal, cara. Tá tudo acontecendo com muita rapidez. Agora eu começo a ver uma luz no fim do túnel com o negócio do streaming, tá começando a acontecer e tá rolando uma resposta. A possibilidade de você ouvir o que quiser, na hora que quiser. Não tem download: você ouve. Quer ouvir como? MP3? Ou quer ouvir numa qualidade melhor? Então paga um preço por isso e tem sua rádio diária. Você faz sua programação e paga mensalmente ou pacote. Mas não me peça de graça a única coisa que eu tenho pra vender. Viva Cacilda Becker. (risos) Pra um artista aparecer hoje em dia não tem linha reta. Antigamente existia isso. Você é cantor, pega aquela rádio, toca não sei quantas vezes, faz um clipe no Fantástico. Tinha um circuito e você fazia.

O artista sabia o que fazer: “Vou precisar de uma gravadora, vou achar um produtor”.

No meu caso, não. Porque de alguma maneira essa indústria sorriu amarelo pra mim. E aí eu disse “Vou fazer, porra, não dependo de ninguém”. E foi assim durante toda minha vida. Não é litigioso nem belicoso, é a coisa do artesão. Eu também descobri uma maneira de fazer e não foi acadêmica, eu não estudei pra isso. Eu, na tentativa de documentar o que eu fazia, porque ninguém fazia, fui atrás de como produzir, de como arranjar, de como gravar melhor, quais os equipamentos pra fazer isso. Então é um artesão. Quando hoje a gente chega à conclusão de que o micro é o grande foco, pô, eu tô nessa faz tempo, cara. A minha vida foi assim. Então me sinto muito em casa. Tô no quintal de casa.

Hoje é tudo muito mais rápido, efeito Internet.

Hoje é tudo muito efêmero. Agora, objeto de desejo, a música como momento de celebração, todo mundo ouvindo e cantando, isso não vai mudar. Esse é sempre o pretexto e o objetivo de tudo: celebrar a música. A maneira a gente vai descobrindo enquanto vai fazendo isso. Mas é necessário. Cultura é o centro estratégico de qualquer nação.

Há centenas de milhares de anos podia ser igual a celebração. Sempre foi assim: juntar gente pra fazer as coisas.

Ritualizar. E aí a música é a melhor delas, é a melhor conexão. Eu digo isso porque eu tenho essa sensação não só dentro do Brasil, mas também fora. A gente tem uma hibridagem que é muito atrativa, que fala realmente pro mundo de hoje. Isso não é tropicalismo não, cara. A gente tem uma excelência que os caras estranham, ficam com medo. Enquanto o naïf é fácil aturar. Mas se você chega com excelência, com rigor técnico, os caras ficam “Cacete! Que porra é essa?” E eles estão começando a descobrir que a gente tem uma profundidade que música nenhuma do mundo tem.

Tags : Lenine


Esperanza Spalding & Milton Nascimento
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Ronaldo Evangelista

Conheci Esperanza Spalding em janeiro de 2006, quando ela tinha 21 anos, um recém-gravado e independente álbum de estreia e vinha pela primeira vez ao Brasil, se apresentar no Sesc Pompeia. Então professora, uma das mais jovens da história da escola, já era dessas artistas que se espalham como uma coisa secreta e especial entre os ouvintes, soma constante. Na época, já me contou que era fã de Edu Lobo e Pixinguinha, o que escrevi na época na Ilustrada. Essa semana, a encontrei em um hotel de São Paulo para conversar sobre seu encontro com Milton Nascimento, em show hoje no Rock in Rio e, oxalá, um álbum juntos. Na Ilustrada de hoje ou, bate papo completo, abaixo.

Esperanza Spalding quer disco com Milton

Esperanza Spalding era uma jovem estudante de contrabaixo da famosa Berklee College of Music quando conheceu a música de Milton Nascimento. Dali até tornar-se uma das mais jovens professoras da mesma Berklee, encontrar reconhecimento irrestrito como ótima instrumentista e afinal ganhar o Grammy de Artista Revelação em 2011, a música de Milton continuou com ela.

Regravou “Ponta de areia”, convidou Milton para cantar em seu disco mais recente, tornou-se amiga próxima e veio passar o último ano novo com ele. Agora, na tarde deste sábado, dentro da programação do Rock in Rio, o encontro da música dos dois se materializa em apresentação em dupla no palco Sunset, às 16h45.

Em conversa em São Paulo, antes de partir para a Cidade do Rock, a instrumentista e cantora de 26 anos, simpática e elegante com um enorme penteado afro, contou sobre sua relação com a música brasileira e a música de Milton e os planos de continuarem fazendo música juntos.

Conversamos a primeira vez há cinco anos, quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Que legal!

Lembro que ali você já comentou que amava música brasileira, citou até Pixinguinha.

Tinha esquecido. É interessante, tanta coisa aparece, eu até esqueço o que gostava três anos atrás. Tanta coisa aconteceu desde então.

Você se lembra de quando tomou consciência da música brasileira como uma coisa única?

Honestamente, a primeira vez que ouvi não sabia o que era, não me importava. Acho que era um disco do Stan Getz. Definitivamente me lembro de ter uma fita com várias coisas gravadas e uma delas era João Gilberto cantando, e isso foi, “uau”. Mas eu nem sabia de onde ele era. Digo, eu sabia onde ficava o Brasil no mapa, mas não tinha familiaridade com a música. Esse foi o primeiro impacto, mas não como algo a estudar ou seguir. Era uma canção incrível que eu ficava ouvindo muito.

Depois, quando cheguei na Berklee, conheci muita música nova pelas pessoas. Você sabe, é o que se faz: “ouve isso, ouve isso”. Então ouvi “Native Dancer”, de Wayne Shorter, foi quando ouvi o Milton pela primeira vez. Embora acho que eu já tivesse ouvido Hermeto Pascoal antes disso, há muitos estudantes de sua música.

Alguém tinha uma coleção de CDs com músicas de carnaval de todo o Brasil, todas as diferentes tradições de carnaval. Como aquela com o guarda-chuva, frevo. Muitos sons diferentes. Ouvi também Dorival Caymmi. Alguém me deu um CD com versões de músicas do Dorival Caymmi, foi quando conheci Caetano Veloso. E talvez Joyce. Rosa Passos também ouvi muito.

Não houve um evento específico incrível. O evento de que me lembro mais distintamente foi definitivamente ouvir “Native Dancer” e ouvir Milton. Depois disso foi apenas pessoas me mostrando coisas legais: “se você gosta disso, precisa ouvir isso”, e aí você vai descobrindo outras coisas.

Sabe dizer o que na música do Milton saltou ao seu ouvido?

Acho que não conseguiria. Pessoas assim são algo tão maior que os elementos que você pode analisar com seu intelecto. Somente alguém muito mais eloquente e poético que eu poderia dizer. De tudo que eu gosto na música dele, se eu dissesse “isso é o que eu gosto” e tirasse e analisasse, não seria a razão. É ele. Ele impacta. Ele é a força de vida de sua música. Não sei explicar isso, mas ele é incrível.

Tenho o exemplo perfeito: Maria Gadú estava em Nova York e me chamou pra tocar baixo em seu disco. Certo. Acho que ela é incrível, por isso eu disse sim. Então, o cara que estava produzindo me mandou as demos. E quando eu ouvi, fiquei meio “oh…” Não gostei. Não gostei da música. Aí fui pro estúdio me sentindo meio mal, porque tinha prometido tocar e não gostava da música. No momento em que ela começou a tocar e cantar, me apaixonei totalmente por tudo. Não é a canção – não é a letra ou nada. Quando ela canta, a letra é incrível, o som do violão é incrível, a melodia é incrível, o groove é incrível. Mas se não for ela cantando, é vazio. Bem, no caso da música do Milton, mesmo se ouvisse uma demo acho que você ficaria impressionado. Mas é ele.

E todas as outras pessoas também. Hermeto Pascoal também. Quando ouço pessoas fazendo covers de suas músicas é desafiador, então é legal, é impressionante que ele tenha escrito aquilo. Mas quando ele toca com a banda dele é totalmente diferente. Como com todos os grandes. Como Wayne Shorter e o Weather Report. É a força de vida deles, é a experiência deles, é o tom de suas vozes, do que viveram e pensaram. É de humano a humano. Sabe?

Claro. Pensei nisso ouvindo as vozes de vocês juntas em “Apple blossom”.

Uau. Ele é incrível.

Sabia que ele é originalmente contrabaixista?

Eu sei, ele me contou. Passei a ficar nervosa [de tocar perto dele].

Você já viu ele tocando contrabaixo?

Ainda não. Ele não toca! Eu fico passando o baixo pra ele e ele, “não, não”. Um dia gostaria de ouvir ele tocando. É engraçado, agora sabendo disso comecei a notar quanto as linhas baixo são importantes nas suas composições. Estávamos ensaiando esses últimos dias e quando eu erro alguma linha de baixo ele percebe na hora. Ele fica muito em contato com o baixo, dá pra sentir essa conexão.

Como tem sido a experiência de tocarem juntos?

Passei o último ano novo na casa do Milton – aliás eu fui lá com um amigo que parece um pouco com você (risos) – e lá nós tocamos muito, mas só pela diversão. Essa é a primeira vez que preparamos música para um show.

Já sabem que músicas vão cantar?

Sim. Mas não posso te contar, tem que ser surpresa. Vamos fazer músicas deles, algumas canções minhas, e de alguns outros compositores. Ele vai tocar violão e também só cantar em alguns momentos. É claro que as músicas soam diferentes, porque não estamos acostumados a tocar sua música. Mas desde o último ensaio a música está realmente viva. Ao vivo qualquer coisa pode acontecer, mas vai ser incrível.

Ouvi dizer que vocês farão um disco juntos.

Gosto desse boato. Vamos ver.

Então a possibilidade existe.

Bem, nós conversamos sobre a ideia de fazer um projeto juntos, mas… Não, não tem “mas”, nós conversamos, é isso. A coisa mais sábia a fazer é tocar, ver como vai ser. Nós definitivamente somos amigos, estamos em contato. Virei passar o próximo ano novo com ele novamente e trarei algumas canções que escrevi, veremos. Não quero que o boato se torne forte demais, porque se não acontecer vai ser decepcionante. Mas conversamos sobre isso, espero que aconteça. Seria mais profundo que um sonho tornado realidade.


Aloe Blacc quer dar rolê com Hermeto Pascoal
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Ronaldo Evangelista

Domingo dia 27 no Rio, dentro do festival Back2Black, terça dia 30 no Bourbon Street em São Paulo, o rimador e cantor de novo soul Aloe Blacc, autor de uma das melhores canções pop americanas dos últimos tempos, “I need a dollar“, se apresenta com sua banda Grand Scheme. Aproveitando o momento, liguei pra ele na Califórnia essa semana pra meia dúzia de perguntas, em matéria publicada hoje na Folha Ilustrada. Abaixo, o papo.

Você já veio ao Brasil?

Nunca fui, vai ser minha primeira vez.

Tenho certeza que você tem alguns músicos brasileiros favoritos…?

Meu interesse na música brasileira nasceu com a bossa nova de Tom Jobim e Astrud Gilberto. Essa foi a primeira coisa brasileira por que me apaixonei. Depois descobri artistas como Jorge Ben, Sérgio Mendes, Arthur Verocai e Flora Purim. Muitas coisas bonitas e diferentes.

E já ouviu alguma coisa sobre o hip-hop brasileiro?

Sim. Ouvi falar muito sobre o grafite e também sobre a cena hip-hop no Brasil, mas ainda preciso conhecer os nomes.

Por aqui também a cena hip-hop tem encontrado equilíbrio com música tocada, cantada. Você acha que o hip-hop e o soul tem encontrado novas relações ultimamente?

Acho que sim. O hip-hop está crescendo – e quando você fica mais velho, quer se expressar de novas maneiras. O meu interesse se virou para a música tocada ao vivo.

Essa influência de soul music é uma coisa que sempre esteve com você ou foi uma novidade quando descobriu?

Foi uma espécie de experimento a princípio. Agora virou meu emprego. (risos) Fiz um álbum chamado Shine Through, em que cantei uma cover de Sam Cooke com uma batida hip-hop, “A change is gonna come”. E também a faixa-título, “Shine through” era uma canção soul. E “I’m beautiful“, do mesmo álbum. Essas foram o começo de minhas experiências com hip-hop e soul. Depois fui me aprofundando mais e mais.

A inspiração para escrever “I need a dollar” foi próxima de escrever um rap?

Foi mais ou menos. Quando escrevi “I need a dollar” estava ouvindo canções folk. Músicas de presos acorrentados uns aos outros, de pessoas que estavam encarceradas e trabalhando como parte de sua pena, cantando para ajudar no trabalho. Cantando suas próprias músicas e dividindo as canções enquanto trabalham. Muitas histórias seriam sobre seus problemas – e me inspirei a criar minha propria canção de presos acorrentados. Essas canções são muito repetitivas e são comunitárias, envolvem mais de uma pessoa. E quando estava escrevendo os versos, acrescentei coisas da minha vida pessoal.

Imagino que tenha sido uma surpresa quando ela começou a ficar famosa.

Nunca esperei que fosse ser um grande hit. Achei que fosse ser como todo o resto, uma canção undeground de que as pessoas gostam, como meu último álbum. Mas se tornou algo muito grande. Acho que todo mundo a conhece hoje, pessoas de quatro anos e pessoas de 64 anos, todos cantam.

Ok, última pergunta: que músico você gostaria de encontrar nessa vinda ao Brasil?

Hmm. Sabe o que seria muito legal? Passar o dia com alguém como Hermeto Pascoal. Como um músico, tenho visto as coisas que ele tem feito pelos anos e ouvido a música que ele tem feito e seria muito interessante e divertido e empolgante passar um dia fazendo um som com ele – ou simplesmente o assistindo.


Conversando com Erasmo Carlos
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Ronaldo Evangelista

Setenta anos de idade, 50 anos de estrada, 40 anos do clássico Carlos, Erasmo. “É muita comemoração, eu tenho que trabalhar”, brinca Erasmo. Disco novo cheio de novidades, só canções inéditas, parcerias interessantes, som nada careta, a essa altura e dois anos de seu último disco de inéditas, Rock ‘n’ Roll, exemplo de pique. O álbum novo, Sexo, produzido por Liminha, está na rua e você pode ouvir e saber mais por aqui. Aproveitando phoner pra bater aquele papo e falar sobre a vida, conversei com Erasmo hoje, logo abaixo.

Como foi o processo de gravação do disco, o Liminha fez os arranjos?

Foi igualzinho o outro disco. Eu faço a musica aqui em casa na minha bateria eletrônica. Então ele vai e comeca a alquimia dele lá. Ele obedece tudo que eu fiz, tudo como está, e vai vestindo aquilo, como se ele vestisse o esqueleto. Aí ele vai botando as guitarras, vai trocando a bateria eletrônica pela bateria humana e vai montando o disco. Vamos trocando ideia e montando o disco.

Tudo a partir do seu violão, da sua voz e da bateria eletrônica?

É, ele conserva às vezes alguns violões meus.

Bonito o violão de nylon em “Sentimento exposto”.

Ele disse, “Erasmo, esse violão eu vou ter que conservar porque ninguém sabe fazer”.

É raro ter violão seu nos discos, né?

É. Porque sempre mudam, né, bicho? Através da minha vida sempre foi assim: eu mostro pros músicos, eles começam a mudar os acordes, daqui a pouco vira outra música, sabe? Os músicos são modernosos. Eles estão sofrendo novas influências sempre, claro. Então qualquer música que eles pegam eles botam influência da época. Eu não, eu tenho minha influência de base. Então ela vai persistir em toda minha vida, acho que é isso que faz o estilo de uma pessoa. Eu gosto de adaptar as tendências para o meu negócio.

Esse processo de gravar em casa e levar pro Liminha é de dentro pra fora.

E conserva minha identidade na coisa.

Você chegou a compor canções que fugiam do tema? Tem um baú de canções ou todas que foram feitas foram utilizadas?

Não cara, aconteceu comigo uma coisa chata que eu fiz muito mais que as canções que as que entraram no disco. Na época eu estava mudando a minha tecnologia caseira. Eu ainda compunha com cassete, sabe?, aí eu passei pra minha época digital, comprei meu gravador digital. Então eu ia compondo, depois pegava o USB e depois fazia um disquinho e guardava. Aí passava e gravava outras coissas no USB, porque o que eu tinha feito estava guardado no CD. Cara, eu acabei perdendo três CDs! Perdi, não sei onde que foi, se roubaram, se deixei por aí. Não sei se porque eu estava gravando e os CDs voltavam e iam e voltavam e iam, de repente eu perdi. Já procurei tudo e ali tinha música pra caramba, tinha muito mais música do que eu gravei. Tem umas coisas ainda do Rock ‘n’ Roll, sobraram de lá.

Então foi questão de umas 30 músicas?

Foi por aí. Muitas eu sei de cabeça, outras não. Foi besteirada minha, coisa de aprendiz.

É bom, as que sobraram devem ser as melhores.

É, já estavam separadas em um CD pro Liminha.

Erasmo, até hoje sinto uma singeleza muito grande no seu jeito de compor. Uma certa simplicidade, uma abordagem quase zen, como uma busca.

Eu sou assim. O que eu mostro nas minhas músicas é o que eu sou, sabe? Por isso que eu acho que eu nunca precisei de analista, o que eu tenho que expressar eu expresso nas minhas canções. Então essa forma de você analisar, ou como qualquer pessoa analisar, é sincero, bicho. Não faço nada por armação, sou muito sincero nas coisas que eu falo.

Legal você falar de terapia, porque tem essa característica quase existencial. Lembrei daquela música linda que você deu pra Paula Toller uns anos atrás.

O q é q eu sou“. Eu não regravo essa música porque ela é muito pra mulher, sabe? A segunda parte dela é bem mulher cantando. Só por isso que eu não regravo. Mas eu queria muito regravar essa música que eu gosto muito dela.

E ultimamente rolou encontro com nova geração de músicos, tem chegado novas informações?

É, a gente tá sempre junto por aí, se encontrando. A minha aproximação com Arnaldo começou que fui gravar o DVD dele, Ao Vivo Lá em Casa. Lá nesse mesmo dia conheci o Jeneci. Aí eu fiz o Grêmio, programa do Arnaldo na MTV, depois ele participou de um show meu, claro que a parceria seria inevitável nesse novo disco, Sexo. O Jeneci também, a gente vai se conhecendo pela vida, como o Kassin, como o Domenico, que eu conheci atraves de Adriana Calcanhotto. a Silvia Machete, que fez um show inteiro com as musicas do Carlos, Erasmo. A gente vai se conhecendo assim pela estrada e vai formando uma amizade. Nos anos 80 já foi assim com Titãs, Kid Abelha, Ultraje a Rigor, vai vindo. Agora essa geração do Marcelo Jeneci. Eu fico feliz com isso porque eu vou ficando. Minhas músicas vão ficando de geração pra geração.

Como se fossem fazendo mais sentido, renovando o contexto.

É, muita gente entende muito mais minha música agora do que entendia na época que eu fiz.

Estava ouvindo recentemente uma gravação de uma música sua muito boa, só você tocando violão em um disco de entrevistas no começo dos anos 70…

O “Samba da preguiça“. Eu fiz essa música pra Nara Leão. Ela cantou num show dela e acabou não gravando. Quem gravou essa música recentemente foi Wanderlea, no último DVD dela.

Tem muitos sambinhas da época, né? “A hora é essa”, que a Célia gravou, “Eu queria era fica sambando”, que os Originais do Samba gravaram…

Ih, caramba, você é conhecedor da minha obra.

Sou fã desses sambinhas, Erasmo. Estou esperando seu disco de sambinhas.

Tá certo. (risos) Tá bom.

§ Erasmo Carlos se apresenta no Teatro Bradesco, em São Paulo, no dia 14 de setembro. Sexo acaba de ser lançado.


Gui Amabis comenta Memórias Luso/Africanas
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Ronaldo Evangelista


Para fazer seu primeiro disco solo, depois do Sonantes e várias trilhas, Gui Amabis mergulhou na inspiração de seus próprios antepassados, buscou o capricho de sons costurados com intimidade e convocou participações de Criolo, Tulipa, Lucas Santtana, Céu, Tiganá e mais um monte de gente legal para construir uma história de passado e tradição.

Apuro de produção, riqueza de detalhes, belas imagens poéticas, canções que fluem como causos com andamento de natureza, álbum que você pode ouvir todo pelo site, Memórias Luso/Africanas.

Hoje, terça-feira, Gui Amabis se apresenta no Sesc Pompeia, Prata da Casa, grátis, 20h, com convidados. Aproveitando a oportunidade e curioso com os mares navegados pelos sons do disco, pedi a ele um comentário faixa-a-faixa, logo abaixo.

DOIS INIMIGOS (com Thiago França)

A melodia inspirada no norte da áfrica serve de base para a letra que trata de um amor mestiço e inimigo, e do resultado disso.

ORQUÍDEA RUIVA (com Criolo, Sinhá e Régis Damasceno)

É praticamente um rock árabe. A música portuguesa tem essa origem por conta da invasão moura que durou aproximadamente 800 anos. Nesta cama Criolo destilou sua poesia sobre um amor etéreo e eterno.

SAL E AMOR (com Tulipa, Céu e Curumin)

Não quis ser totalmente literal, então tomei a liberdade de introduzir sons familiares a mim e fora do “tema” do disco. Neste caso uma pitada do Caribe, uma paixão musical.

SWELL (com Céu, Dengue e Samuel Fraga)

Certo dia pensando na travessia atlântica me peguei pensando em me transformar em água, e como esta faria este trajeto. Tentei passar isso através do arranjo e letra.

AO MAR (com Tulipa e Curumin)

Na mesma onda sonora de “Sal e Amor” trata do amor imigrante. Do homem que cruza um oceano deixando seu amor na terra natal, mas mesmo assim não perde o sentido e o sorriso.

DOCE DEMORA (com Céu, Siba, Dengue e Maurício alves)

Musicalmente a que melhor retrata a junção da música portuguesa e africana, essa quase “morna” (Gênero musical Caboverdeano) homenageia minha filha e o ciclo da vida no planeta.

O DEUS QUE DEVASTA MAS TAMBÉM CURA (com Lucas Santtana, Dengue e Samuel Fraga)

Uma valsa densa que retrata a saga de uma fuga. A minha preferida do disco. Letra inspiradíssima de Lucas Santtana.

IMIGRANTES (com Tiganá, Céu, Rodrigo Campos e Thiago França)

Um lamento sobre o pós-guerra.

PARA MULATU (com Criolo, Marcelo Cabral e Maurício Alves)

Homenagem ao músico Etíope Mulatu Astatke, novamente o tema do amor mestiço na poesia de Criolo.

FIM DE TARDE (com Céu)

O nome já diz tudo…


Bruno Natal e os Bastidores de Chico
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Ronaldo Evangelista

Bruno Natal, do essencial blog URBe e de filmes como o documentário Dub Echoes e making ofs de discos de Vanessa da Mata, Maria Bethânia e Chico Buarque, recentemente realizou o projeto Bastidores, mostrando em pílulas, teasers e clipes os fazeres do último disco de Chico, Chico.

O conteúdo, inicialmente exclusivo para pré-compradores do CD, está agora aberto para todo mundo no site do projeto e também já pronto pra ser visto o documentário Dia Voa, de uma hora, mostrando o álbum por dentro, play acima.

Aproveitando o timing e a curiosidade, fiz algumas perguntas a Bruno sobre o processo de registro do processo de criação de canções e arranjos de um disco de Chico, logo abaixo.
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Como foi o processo, você acompanhou as sessões de ensaio/gravação no estúdio/casa do Luiz Claudio Ramos? Pra onde direcionava o olhar, o que você caçava com a câmera? Algo foi restrito?

Acompanhei apenas o último dia dos ensaios na casa do Luiz, a filmagem foi feita praticamente toda durante as gravações do disco. Não fazia sentido simplesmente repetir o que havia feito no disco anterior, “Carioca”, em 2006, quando registrei as gravações para o documentário “Desconstrução”, que acompanhou o disco em DVD. Muita coisa mudou de lá pra cá, possibilidades que antes não existiam. A rede se tornou mais social, a qualidade das conexões melhorou. Pode se dizer que para um lançamento desse porte é uma obrigação estar presente no meio digital. Nada foi restringido. Como da outra vez, pude filmar o que quisesse e simplesmente apresentei o material pronto – e nenhuma modificação foi solicitada.

Para os teasers e clipes, foi quanto tempo de filmagem/gravação, com que equipe de captação? Para um trabalho desses hoje é preciso juntar pessoal ou o esquema é abordagem intimista, só uma câmera 5D e um microfone Zoom?

As filmagens duraram dois meses, aproximadamente, o mesmo tempo da gravação do disco. Desse material foram extraídas as mais de 50 pílulas de vídeo publicadas no chicobastidores.com.br durante o pré-lançamento e também o documentário “Dia Voa”. A equipe de vídeo foi enxuta. Era eu no estúdio todos os dias, o Tiago Lins fotografando as entrevistas e o Daniel Ferro editando e finalizando. Teve também toda parte do saite, feita pela Arterial.

Não utilizo 5D, para parte pesada do trabalho prefiro a Panasonic AG 150. Nessa DSLR os controles de áudio são limitados e menos confiáveis (ao menos sem outras traquitanas) e a pegada é de uma câmera de fotografar, não de filmar. Além disso, parece que absolutamente tudo é filmado nesse formato hoje em dia, está rolando uma pasteurização, todo clipe, vídeo,curta, tem a mesma cara. Utilizei uma T2i para as entrevistas.

Como você sentiu a recepção do projeto de ir liberando músicas pros early adopters? O investimento pessoal dos fãs nos artistas, corrente em lançamentos de bandas como Radiohead, já se tornou comum e funcional ao fã de música brasileira como Chico?

Foi uma aposta. Considerando que a página do Chico no Facebook tem mais de 450 mil pessoas, imaginava que daria certo sim. E deu. Tanto foi que o disco iria sair com 25 mil cópias, saiu com 50 mil e já foram encomendadas outras 20 mil. Mesmo os fãs que não compraram na pré-venda para ter acesso ao conteúdo exclusivo e prioritário aos vídeos assistiram os vídeos que estavam abertos e foram se familiarizando como disco. Fora que “Chico” passou um mês inteiro na mídia, todo dia, nunca tinha visto isso. Repercutiu muito.

Qual foi a coisa mais legal que você não sabia e descobriu sobre Chico nesse processo?

Que ele saca muito do espírito colaborativo da rede, mesmo sem utilizar tanto. A rede apenas replica nosso comportamento social, as vezes em outra escala, portanto coisas que ele queria que funcionasse de determinada maneira simplesmente porque achava que assim seria melhor, de fato tinham a ver com a mídia.

E qual a música do Chico mais tocada no(s) seu(s) player(s)?

De todos os tempos? “Construção”.
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Seis perguntas para o Bixiga 70
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Ronaldo Evangelista

Semana passada, terça-feira, no Sesc Pompeia, Prata da Casa, foi uma noite linda: 800 pessoas lotando a choperia, outra centena pra fora sem ingresso, Bixiga 70 fazendo o melhor show de sua ainda curta e já intensa existência.

Pra pequena orquestra que começou há menos de um ano em festa em homenagem a Fela Kuti (e fez show dedicado ao mestre nigeriano na festa de lançamento de sua biografia), já é algo mais apresentar um repertório quase todo de músicas próprias, no esquema de lançar o primeiro disco.

Dez músicos, várias pegadas na soma: Cris Scabello na guitarra, Marcelo Dworecki no baixo, Décio 7 na bateria, Mauricio Fleury no piano elétrico, Romulo Nardes e Gustavo Cecci nas percussões, Cuca Ferreira no sax barítono, Daniel Gralha no trompete, Daniel Nogueira no sax tenor e Douglas Antunes no trombone de vara.

O próximo show da banda é no sábado, em Araraquara, e aproveitei para contar as origens secretas do Bixiga 70 e o ponto atual de sua história em conversa com o pianista e maestro Mauricio Fleury, seis perguntas abaixo.
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Como foi o processo de formação da banda, quando e como vocês se juntaram com essa ideia pela primeira vez?

Nós começamos a tocar juntos durante a gravação do disco do Pipo Pegoraro, no estúdio Traquitana. O Marcelo Dworecki (baixo), o Cris Scabello (guitarra) e o Décio 7 (bateria) já tocavam com o Pipo e foi assim que eu os conheci. Depois da gravação, que já apontava para uma sonoridade afro, nós continuamos conversando, ouvindo e trocando sons africanos que a gente curtia. A partir daí, o Décio começou a convidar outros músicos e a coisa começou a andar. Nosso primeiro ensaio foi em agosto e o primeiro show em outubro de 2010, na Festa Fela de São Paulo.

A principal influência da banda é o afrobeat? Que outros caminhos vocês tem encontrado ultimamente?

O afrobeat é uma influência forte para a gente, sem dúvidas, mas nós também somos muito influenciados pelos ritmos afro-brasileiros do candomblé, e por artistas daqui como Pedro Santos, Os Tincoãs e Gilberto Gil. A música africana de uma forma mais geral (ritmos como o Malinké da Guiné, o Sabar de Senegal, o Highlife nigeriano, entre outros) também está presente na nossa combinação de ritmos. Além disso tudo, rolam influências de cumbia, funk, jazz, dub e todo o resto… cada um dos dez vem de uma escola diferente e isso só acrescenta no processo.

Que versões vocês costumam tocar ao vivo? Já estão com repertório de músicas autorais, todos compõem?

Ao vivo, costumamos tocar algumas do K. Frimpong, um grande compositor, cantor e guitarrista de Gana, também tocamos uma ou outra da Budos Band. Do Fela Kuti nós tocamos várias ao longo dos shows, mas a que nunca falta é “Opposite People”, nossa preferida. “Desengano da Vista” (do disco Krishnanda, de Pedro Santos) é uma que também está sempre no nosso repertório. Já temos várias músicas autorais, os principais compositores da banda são o Décio, o Cris, o Marcelo, o Cuca (sax barítono) e eu. Mas todos da banda acabam contribuindo muito na hora do arranjo.

Qual a relação da banda com o estúdio Traquitana (na rua Treze de Maio, 70, Bixiga)? O que de mais interessante acontece recentemente por lá?

Essa relação é total, acho que a banda dificilmente existiria se não fosse o estúdio, que tem espaço para todo mundo e funciona como nosso quartel-general. Recentemente, quem passou por lá foi o Tatá Aeroplano, a Trupe Chá de Boldo, Anelis, Leo Cavalcanti, Thaide, Márcia Castro, Cachorro Grande, Bruno Morais, Nhocuné Soul… Sempre tem gente legal colando.

Vocês já gravaram o primeiro disco? Só autorais? Quem produz e participa, quando sai?

Já gravamos. Quase todas são autorais, já que gravamos o “Desengano da Vista” do Pedro Santos. Deve sair no segundo semestre e foi produzido por nós e pelo Victor Rice, no estúdio Traquitana. Gravamos todo mundo tocando junto e agora estamos mixando as primeiras músicas.

Quais as outras bandas mais interessantes em que se envolvem membros do Bixiga?

Todos os integrantes possuem projetos paralelos ou acompanham outros artistas, são tantos que ficaria difícil lembrar de todos. O Cris toca com a Anelis e com o Rockers Control, o Décio também é do Rockers, toca com o Leo Cavalcanti, Pipo Pegoraro; o Marcelo também toca nessas duas últimas e tem a Banda Estrombólica, o Dani Boy (sax tenor) tem uma big band, que é o Projeto Coisa Fina, o Doug Bone (trombone) toca com a Black Rio e outras inúmeras bandas; o Daniel Gralha (trompete) toca no Projeto Nave que é a banda do programa Manos & Minas da TV Cultura e também no Otis Trio que é uma banda de jazz classe A, e é disso que eu consigo lembrar agora.
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Fotos das gravações do álbum do Bixiga 70.
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Celia 1971/1972
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Ronaldo Evangelista


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De hoje a domingo, no Sesc Vila Mariana, Celia se apresenta com a ocasião especial de comemorar 40 anos de carreira, completados em 2010 – em 2011, comemoramos 40 anos de sua primeira gravação.

Seus dois primeiros discos, de 1971 e 1972, há tempos que são altamente cultuados no meio de colecionismo de vinis e difusão pela internet. Agora, pela primeira vez, a qualquer momento chega às lojas de CD que ainda existem versão dois-em-um dos dois álbuns, pela Warner, dona do catálogo da Continental, que lançou os LPs originais.

História que se cruza com a de Celia é a do grande maestro Arthur Verocai, que, depois de trabalhar nos primeiros discos e hits de Ivan Lins e Celia, em 1972 gravou álbum absolutamente ímpar na história da música brasileira, cheio de ideias ousadas e sons revolucionários, hoje em dia discografia básica de produtores e rimadores de hip-hop por todo o planeta.

Aproveitando o momento do show e o relançamento de seus dois incríveis primeiros discos, conversei com a Celia sobre sua história, a gravação e o impressionante repertório dos primeiros LPs, sua relação com Verocai e os fãs que hoje formam fila para pedir seu autógrafo: os rappers de São Paulo.
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Como você chegou a primeira vez na Continental?

Foi tudo muito sem querer. Eu dava aula de violão, era a cantora que estuda música. Estudei muitos anos, fiz teoria, harmonia, composição, orquestração, aquelas coisas que se usavam. Quer dizer, usava também até a página 3, né? (risos) Eu estudava música, dava muita aula e cantava, mas não profissionalmente. Todo mundo achava o máximo, mas eu sempre fui muito crítica comigo.

Até que uma amiga, Elody, me apresentou um empresário chamado Waldomiro Saad e o Waldomiro me apresentou o maestro Pocho Perez, um mexicano que vivia aqui no Brasil e era diretor artístico da Continental. Ele me disse, “menina, por que você não grava um LP?” Eu disse, “eu gravo, como é que faz?” Então ele falou, “passa amanhã na avenida Sete de Abril” – a Continental era lá – “que eu já quero assinar um contrato com você”.

Na época o diretor da gravadora era o Rodrigues e não sabia de nada, quando chegou falou “quem é essa porra dessa Célia aqui?” O Pocho disse, “é uma moça assim e assim”. Chegou Agostinho do Santos e parece que desfiou um rosário de maravilhas sobre mim. Aí o diretor da gravadora disse, “já que vocês fizeram isso, agora dêem todas as condições pra ela”.

A Continental era uma gravadora sertaneja e estava querendo investir nessa coisa de MPB, então botou todas as fichas em mim. Consegui arranjadores maravilhosos, como o Rogério Duprat e o Arthur Verocai.

Os dois discos são cheios de músicas inéditas e muito modernas. Como vocês chegaram nesse repertório?

Fui fazer o meu primeiro LP com uma lista de compositores que começava com Antonio Carlos Jobim e terminava com Vinicius de Morais. E eu ali, a Célia de São Bernardo do Campo. Quem me ajudou, muito, foi a Joyce, que era amiga da Elody e fez a ponte com o pessoal todo. Se não fosse a Joyce na época seria a maior saia justa pra chegar até essas pessoas, pedir música, escolher repertório.

A Joyce mesmo me enchia de música, “Abrace Paul McCartney” é uma maravilha. Gravei também o Nelson Ângelo, que era marido dela na época. Gravei “Para Lennon e McCartney” antes do Milton. Também o Lô e o Márcio Borges, o pessoal de Minas era muito chegado. E Egberto Gismonti. Uma maravilha, foi uma época muito produtiva.

Do Ivan Lins sempre gravei coisas. Nessa época ele ainda nem compunha com o Vitor Martins – tanto que no meu segundo disco tem músicas do Vitor com Arthur Verocai. No primeiro gravei também “Adeus Batucada”. De repente, diziam “quem é essa garota que tá começando a cantar com 20, 21 anos e vindo com uma música de Carmen Miranda da década de 30?” Foi exatamente esse tipo de coisa que chamou atenção da imprensa na época.

O segundo tem inéditas do Erasmo, do Zé Rodrix, do Marcos Valle.

“Detalhes”, Roberto Carlos me deu. “A hora é essa” é inédita mesmo, do Erasmo e do Roberto. Eles faziam muita coisa inédita pra mim. Liguei pro Erasmo e pedi, ele fez “A hora é essa”, depois fez “Nasci numa manhã de carnaval”, que gravei em compacto. Eles mandavam em fitinha. (risos) Ou eu ia pra casa deles no Rio e a gente gravava em cassete, eu trazia pra casa e aprendia. Erasmo sempre foi uma pessoa muito querida, Roberto também, muito bonito.

O Zé Rodrix morava aqui em São Paulo, sempre morou. Ele me mandava um monte de músicas e eu escolhia, gravei “Vida de artista”. O Ivan também me mandava um monte e eu escolhia. “Dominus tecum”, do Marcos Valle, ele fez, eu gravei primeiro e ele gravou depois. E depois foi até um tema de novela. O Marcos tinha uma casa na Urca, maravilhosa.

Tom Jobim também, fui até a casa dele de gravador na mão. Em cima do piano dele tinha tralha que não acabava mais, ele dizia “ninguém mexe aqui na minha bagunça”. Fui à casa dele e no dia em que fui ele estava compondo “Águas de março”.

Uau. Uma característica que sinto da sua interpretação, além de deixar as coisas simples mais sofisticadas, é de deixar as coisas sofisticadas com uma casualidade poética, uma coisa cotidiana muito charmosa.

No segundo disco gravei Tom Jobim e um bolero do Armando Manzanera, coisa que ninguém fazia. Me perguntaram por que gravei esse bolero, eu falei “ah, porque eu quis, né?” Me perguntavam, “mas qual é a linha?” E eu, “linha?”

A crítica dizia que eu precisava ter uma linha, e eu mandei todo mundo à merda na época. Mandaria de novo hoje, quem foi que disse que eu tenho que seguir regras? Quem tem que ter linha é o Bergman, que é cineasta. Eu sou uma intérprete. A partir do momento em que misturo Benito di Paula com Antonio Carlos Jobim já perdeu a linha. Eu sou uma desalinhada. (risos)

O Verocai me contou que gravou o disco dele graças a você. Como você o conheceu?

Foi o Ivan que me apresentou o Verocai. Ele trabalhava com o Ivan, que um dia me disse “nossa, preciso te apresentar um maestro maravilhoso”. No meu primeiro disco o Verocai fez um ou dois arranjos, fez “No clarão da lua cheia”, do Ivan. Gostei tanto que no seguinte ele fez tudo, todos os arranjos do meu segundo disco.

Aí falei, “agora precisa fazer um LP instrumental na Continental”. Consegui pra ele fazer o LP dele, onde ele está sentado na capa. Como eu virei a rainha da Continental, virei um dia e falei: “Tem um maestro aqui que é maravilhoso e quer fazer um disco instrumental. Por favor lancem pra mim.” E a Continental dizia “pois não”. Ele fez com todas as cordas e pompa e circunstância que quis, não teve problema nenhum.

No meu segundo disco gravei do Veroca “Na boca do sol” e no disco dele participei cantando aquela música “Seriado“, que também cantei no show que ele fez no Sesc Pinheiros. No show ele falou, “minha carreira devo a essa moça aqui”. Eu disse, “sua carreira você deve a você”. E ele, “ah, mas se você não me empurrasse… música instrumental?”

Eu estava no show dele, foi lindo.

Quando fui fazer o show do Verocai, vários garotos chegaram com LPs meus na mão. Pensei, “é por causa do que eu fiz com o Verocai”, mas eles tinham os meus dois primeiros LPs! O Danilo Caymmi falou pra mim: “Que isso?! Isso é coisa de paulista, carioca não faz isso. Ninguém vai num show meu com um monte de LPs.” (risos)

Era uma fila de garotada, aí falei: “Olha, vou fazer uma pergunta, como é que vocês tem o meu disco?” O que eles me disseram é que todos os rappers tem os meus discos, inclusive fazem muito trabalho em cima deles. Fiquei extremamente feliz, foram mais de 50, 60 discos que eu autografei.

Vou fazer em setembro show no Sesc Pinheiros e vai ter uma noite que vou chamar rappers pra fazer comigo. Eles fazem parte da minha vida. Essas coisas novas, de primeira classe – como os rappers, cantoras como a Fabiana Cozza – a gente tem que prestar atenção, senão envelhece.
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Os dois LPs obra-primas que estão saindo compiladas em um CD, pela Warner:

CELIA (Continental, 1970)
Arranjos de Pocho Perez, José Briamonte, Rogério Duprat e Arthur Verocai

01 Blues (Capinan / Joyce)
02 No clarão da lua cheia (Ronaldo Monteiro / Ivan Lins)
03 Durango Kid (Toninho Horta / Fernando Brant)
04 David (Nelson Ângelo)
05 To be (Joyce)
06 Abrace Paul McCartney (Joyce)
07 Pelo teletipo (José Jorge / Ruy Maurity)
08 Adeus batucada (Sinval Silva)
09 Para Lennon e McCartney (Márcio Borges / Lô Borges / Fernando Brant)
10 Zózoio Como é que é (Nelson Ângelo)
11 Fotograma (Tibério Gaspar / Antônio Adolfo)

CELIA (Continental, 1972)
Arranjos e regência do maestro Arthur Verocai

01 A hora é essa (Erasmo Carlos / Roberto Carlos)
02 Toda quarta-feira depois do amor (Luiz Carlos Sá / Zé Rodrix)
03 Dominus tecum (Paulo Sergio Valle / Marcos Valle)
04 Ay Adelita (Piry Reis / João Carlos Pádua)
05 Vida de artista (Luiz Carlos Sá / Zé Rodrix)
06 Mia (Armando Manzanero)
07 Na boca do sol (Vitor Martins / Arthur Verocai)
08 Em família (Tom / Dal)
09 Detalhes (Erasmo Carlos / Roberto Carlos)
10 É preciso dizer adeus (Tom Jobim / Vinicius de Moraes)
11 Dez bilhões de neurônios (Zezinha Nogueira / Paulinho Nogueira)
12 Badalação (Bahia volume 2) (Nonato Buzar / Dito / Tom)
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