Lenine & o descobrimento do Brasil
Ronaldo Evangelista
Estava ali, de bobeira na praia em Salvador, quando Amauri Gonzo me aborda: não quer entrevistar o Lenine pra +Soma? Havia visto seu show na véspera, sabia-o figura muito interessante e a oportunidade era perfeita. Como esperado, papo rico de ideias e resultado lindo, como toda a revista. Na edição 25 da +Soma e no novo portal da revista. Seguindo, a íntegra.
O novo álbum de Lenine, Chão, será lançado pela gravadora Universal no próximo dia 19 de outubro.
Um amigo tem a teoria que Lenine não é cool porque é cabeludo. Mas discordo: aquele ar hippie meio fora do tempo de seus cabelos compridos e olhar brilhante é parte essencial do charme que exerce. Um pouco como sua própria música, que faz questão de prescindir de uma definição clara de estilos, como se ao largo do zeitgeist. Se não é descolado, é justamente porque segue desviando de caminhos esperados.
Fazendo música há tempo suficiente para já ter visto algumas revoluções e vivido diferentes ondas de hype, Lenine representa uma força espontânea que, mais do que integrado ao status quo da indústria, é algo por si só que o mainstream não pôde ignorar. Paciente e dedicado, entendeu há tempos que o despreconceito estilístico e a existência artística para além das estruturas comerciais hegemônicas eram a chave para o futuro, digo presente.
A busca pelas coisas ricas e simples, a naturalidade com que recebe e apresenta ideias e o riso fácil não são muito diferente na música ou no papo, no mundo real ou no palco. Na Bahia por ocasião do festival Conexão Vivo, nos encontramos sem pressa, para falar de mais assuntos que você imaginaria caber em uma hora de conversa, tarde de domingo sob o sol e à beira do mar de Salvador.
Quanto tem na sua música de tradição de Pernambuco? Você sente que tem, desde sempre?
Eu sinto que os outros sentem que tem, mas não é intencional. Não sei em que medida entra o quê no que eu faço. Eu posso reconhecer depois de feito, mas eu sou um somatório de experiências. Dentro dessas experiências tem o que é raiz e tem o que é antena, e isso está misturado. Como, eu não sei muito bem não. Não sei em que dosagem se dá isso. Pra mim fica claro que um ouvinte médio do Brasil identifica rapidamente o quanto tem na minha música de nordestino ou de tradição. Mas quando eu tô tocando fora do Brasil isso se perde completamente. Então fica mais fácil para um estrangeiro identificar na minha música justamente o que ela não tem de brasileira. E aí eles, “porra, mas isso é meio isso ou aquilo, é meio funk, meio rock, meio sei lá”. Então eu acho que você identificar algo na obra de alguém tem a ver com a sua informação, com o seu filtro e o seu olhar. O meu processo é mais intuitivo, tem mais a ver com o que eu ouço, o que eu gosto, a minha curiosidade. E na hora que eu tô fazendo, isso de alguma maneira eu jogo pra fora. Mas não é intencional nem é um ato de pesquisa ou de resgate.
É uma coisa instintiva. Você não pensa “vou colocar isso ou aquilo”.
Quem faz resgate é salva-vida ou bombeiro. (risos)
Mas quando era mais novo você lidava com coisas típicas, ritmos tradicionais?
Sim, por causa dessa felicidade e coincidência geográfica de ter nascido naquela região portuária que durante muitos anos foi um grande pólo e que, também por ser portuária, por lá transitavam vários tipos de expressões. Acho que fica claro para quem conhece o Recife hoje entender essa diversidade. Pela história que a gente tem como cidade e como catalisador e como trânsito de várias expressões. Eu me lembro, novinho, meu pai me levando pra ver o Pastoril do Faceta, ou me levando na época do carnaval pra ver todas aquelas agremiações e tal. Algumas delas me metiam muito medo, inclusive. Eu queria distância. Mas, lógico, de alguma maneira isso fez parte. Sublinarmente entrou. E aí, quem me trouxe pra música realmente, lá pros 14, 15 anos de idade, foi o rock’n’roll, cara. Aí conscientemente. Eu sou Zeppelin. Aquele início do prog, que depois ficou cafona pra cacete. Mas ali é onde eu digo (suspiro de espanto): “Que música é essa? Que porra é essa?”
Você já tocava antes disso ou começou ali?
Lá em casa todo mundo tocava algum instrumento. Tinha essa coisa, meio ritual até, de nos finais de semana o violão rodar, cada um ter um caderninho de músicas que gostava de cantar. Isso transitava. Então, em casa, mais do que tocar a música que você gostava, você tinha que tocar a música que os outros gostavam. E isso deu uma bagagem, realmente. Mas celebrativa, eram só os encontros nos finais de semana.
Então nem dá pra achar o ponto em que a música começou na sua vida?
Acho que sempre esteve. Eu lembro quando eu quis fazer, e aí foi com o rock.
Você pensou “vou ser músico”?
Não. “Eu quero isso aqui. Que expressão é essa?” E comecei a me informar. Coincide também com o Clube da Esquina. Eu tinha essa coisa, durante muito tempo [meu único interesse] foi a música estrangeira.
Foi na mesma época que descobriu o Clube da Esquina?
Foi um pouquinho depois. Eu readquiri uma memória que não tinha. Essa memória de infância eu só readquiri quando entrei na faculdade, aos 17 anos. Porque a gente se encontrava nos diretórios pra ouvir um som e caiu um disco do Jackson do Pandeiro. Aí o cara disse: “Tu conhece?” E eu disse: “Não”. A minha memória consciente não se lembrava. E o cara botou o disco, chamado O Rei do Ritmo. E à primeira audição eu saí cantando tudo. Eu não sabia que sabia. Isso foi fundamental, porque aí eu readquiri. Fui em casa, fui ver os discos que papai ouvia, e aquilo tudo teve um sentido pra mim. E aí eu conhecia um bocado de coisa sem saber que conhecia. Isso ia do universo desde Mario Lanza e canção napolitana até, sei lá, Elizeth Cardoso, Ciro Monteiro, Luiz Gonzaga, Jackson. E toda essa bagagem eu tinha de muito novo, mas só fui readquirir depois.
Aí comecei a compor. E, de tudo o que eu não gostava na época do rock’n’roll, no Brasil me chamou atenção o Clube da Esquina. E aí contemporaneamente eu consegui acompanhar, como fã, aquele núcleo de pessoas em volta de Milton Nascimento. Fazendo uma música divina, que eu achava que era impossível fazer, que a gente não tinha tecnologia pra isso. E, realmente, Milton readquiriu uma excelência técnica que a gente tinha perdido, que a gente tinha acompanhado com a bossa nova e que teve um momento, que coincide com o punk também, em que o ruim é bom. (risos) E, porra, cara, o ruim não é bom, velho! O ruim é ruim e o bom é bom. (risos) Foi mais ou menos isso que aconteceu na minha cabeça, e eu passei a compor, a participar de alguns festivais dos cursinhos que tinham na época, em Recife. E aí eu vi a possibilidade, realmente, de trabalhar com música.
Interessante você falar do Clube da Esquina, fico imaginando como devia bater esse som de Minas lá em Pernambuco. O Milton desenvolve um som que é muito dele…
Movimento do eu sozinho. Eu acho um pecado quando se fala dos grandes movimentos que aconteceram no Brasil. Milton é um movimento! (risos) Milton é um maravilhoso movimento, que expôs tanta gente bacana, ele fez janela pra essa turma. E também teve essa excelência na produção dos discos, que até então eu não via. E aí eu acompanhei mesmo, esperava. “Vai sair disco novo de Milton”, e eu corria pra ser o primeiro, pra ouvir. E tirei tudo. E era cachorrada, porque as músicas são cachorradas! A história não é litorânea e solar. É lunar, é montanhosa, sinuosa. (risos)
Engraçado que tudo que você comentou são coisas muito únicas, sem parâmetro. O Milton é o Milton, assim como o próprio Jackson tinha aquela coisa muito própria, Led Zeppelin também.
Pontuais. E parecem até solitárias no universo, eu também acho. Por exemplo, onde se enquadra um Djavan nisso tudo? Eu não sei, é Djavan, porra. Onde se enquadra Zélia Duncan nisso tudo? É Zélia, porra! Então tem muitos solitários. O Brasil tem grandes expoentes que foram conquistando seu espaço solitariamente com uma autoralidade no fazer, uma autoralidade no compor. E a gente tá cheio de grandes exemplos disso aí.
Um país musical e um país que desenvolve criatividade.
E um país em que a música vem agregada com muita coisa, cara. Os gringos agora tão começando a perceber a profundidade da música que a gente faz. Porque durante muito tempo era só o naïf: música brasileira é gente pintada, batuque e bunda. Porra, cara… não. E o Uakti? Onde se encaixa o Uakti nisso? Então talvez eu me adeque mais a esse solitários solidários, faço parte dessa tribo. E coletivo, né. Porque é um eu sozinho coletivo. (risos) Por mais paradoxal que possa parecer.
Você falou em Jackson, imagino que Luiz Gonzaga você também tenha ouvido muito.
É, mas não só eles. Tinha trio nordestinos, Três do Nordeste, Anastácia, Dominguinhos, todo esse imaginário nordestino. Pô, o Gonzaga foi o maior artista pop, cara. Antes de existir o universo pop. Imagina que na década de 50 o cara enchia ginásios vestido de gibão de couro, se paramentava pra entrar. Quer coisa mais pop do que isso? Gonzaga é foda.
Tinha figurino.
Figurino. (risos) Muito foda. Eu sou muito fã. Foi o primeiro cara que botou foco em uma cultura supostamente nordestina. Eu digo “supostamente” porque até então não tinha parâmetros. E aí chamou a atenção das pessoas: existe uma cultura no nordeste do Brasil, especial, própria. Árabe, moura. Se perdeu no resto do Brasil e lá não, continuou aquela coisa meio árabe mesmo. Os mouros ficaram 600 anos na península ibérica. É natural, né? Veio com as barcas. Veio na época do descobrimento, naquelas naus gigantescas. Vieram um bocado de árabes, bicho. (risos)
Uma característica que eu senti no seu show foi uma coisa não exatamente metafísica, nem existencialista, mas de contemplação…
Tem. É legal você levantar isso porque realmente eu acho que existem dois focos de expressão no Brasil: uma é litorânea e a outra interiorana. A litorânea é mais solar, a interiorana é mais lunar. Acho que sou fruto dessas duas, eu faço um híbrido entre o lunar e o solar. Eu acho realmente que tenho essa coisa celebrativa e de música poderosa, mas o lúdico está muito presente em tudo que faço. A canção tá muito presente em tudo que faço. Acho que isso é uma mescla das duas expressões.
Você falou que quando compõe é uma coisa intuitiva. Mas você pensa no tipo de emoção que as canções despertam, ou isso também é um mistério?
Pra ser bem honesto, é muito egoísta essa parte. Porque eu só faço pra agradar aos que eu amo. Eu quero fazer uma canção bacana pro meu filho dizer: “Pô, pai, que canção da pesada.” Pra minha equipe que trabalha comigo dizer: “Ih, rapá!” Os meus parceiros dizerem: “Ah, eu sabia…” É simples assim. Evidentemente que eu intuo que conseguindo agradar esses meus desconfiômetros familiares, digamos assim, eu tenho uma grande possibilidade de espraiar isso e tocar nas pessoas fora desse núcleo. Mas aí quando eu toco as pessoas é com essa verdade. É uma coisa muito autêntica ali e até meio ritualizada, do coletivo que a gente consegue fazer com a banda. Então é como se fosse minha igreja mesmo. Tocar, fazer discos, isso tudo é sempre pretexto pra eu poder viajar e sair tocando pelos lugares. É meu ritual, cara. Minha religião. Eu procuro manter sempre limpo esse canal de conexão pra poder continuar com essa síndrome de Peter Pan. Cada show pra mim é como se fosse final de campeonato, sacou? É ali, tô terminando, é o campeão. (risos) Então tem uma entrega, e a gente exercita isso no grupo, na equipe. É assim, cara. Simples assim: tudo o que eu faço é só pra quem eu amo.
Como no começo da história, quando tocava pra sua família.
Como no começo da história, justamente! Por isso não mudou nada, cara! Por isso eu continuo sentindo esse prazer juvenil de subir no palco e me divertir. (risos) Minha formação, ou pelo menos como eu entendo ela, é um agregado de experiências. E o tempo todo se auto-alimenta. O tempo todo eu tô viajando, o tempo todo eu tô conhecendo pessoas novas, o tempo todo isso está sendo um estímulo pra eu continuar o tempo todo fazendo música, fazendo disco e tal. Virou um maravilhoso moto contínuo que não para. Eu não tenho descanso, porque eu gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Preciso sair do meu umbigo eventualmente, porque eu não me engano nessa coisa. Isso não cola. Continuo me perguntando três coisas: O que eu faço? Por que eu faço? Pra quem (ou pra que) eu faço? Enquanto eu tiver essas respostas, fico seguro. Faço as coisas com mais segurança, com mais excelência.
E ouso achar que minha música tem a ver com o que você faz: reportagem. Não é, não? É como se fosse uma fotografia daquele momento. É um documento histórico. A gente está construindo essa materialidade do que é o hoje com essas referências que cada um põe, com os depoimentos de cada um. E pra entender o Brasil, há que se ouvir muitos depoimentos. (risos) A gente só vai entender o que é o Brasil de hoje se a gente tiver o maior número de informações sobre quem tá fazendo o Brasil de hoje, e a gente não sabe. A gente descobriu o Boi de Parintins agora há alguns anos, e é uma cultura que já tem quase 30 anos. A gente já ouviu falar na guitarrada, mas é tão distante pra gente que a gente não sabe quem é o mestre da guitarrada. A gente não tem ideia do que seja o fandango, uma expressão de branco ali do Paraná. Isso a gente não tem noção. Então, pra conhecer o Brasil, há que se ouvir muita coisa. E cada região tá com essas pessoas instigadas, fazendo suas misturas, fazendo sua crônica. Quer entender o Brasil? Vai ouvir, cara. Tem muita gente falando do Brasil.
E tudo é brasileiro, nasce aqui.
A gente não é nada. Na famigerada carta do Caminha, só uma frase ali tinha todo sentido: “Aqui, o que se plantar vai dar”. Essa era a única verdade, o resto ele falou merda pra caralho. (risos) Mas essa é a verdade: tudo o que chega aqui ganha uma cor diferente. É solar, é porque a gente tá perto dos trópicos, perto do equador, sei lá, velho. Porque a gente é o novo mundo, porque a gente tá na puberdade.
E o novo tá sempre aí.
Novo é aquilo que foi esquecido, por isso é que a gente acha que é novo. (risos)
Engraçado que hoje em dia fala-se o tempo inteiro de uma nova geração da música brasileira. Vinte, trinta anos atrás a turma com quem você surgiu talvez tenha sido a primeira nova geração da música brasileira.
Talvez tenha sido uma primeira geração que praticava uma hibridagem, uma promiscuidade que até então não existia. Porque eram os nichos: tinha a MPB, tinha o samba, aí surge o rock, aí o sertanejo, a música romântica… são núcleos. E esses núcleos não se transitavam muito não, eram universos, ilhas, era tudo meio cada um no seu nicho. Acho que hoje em dia não existe mais isso. Existe um trânsito maravilhoso, saudável, em que todo mundo toca com todo mundo. Existe essa celebração do fazer, porra. Sacou? Só conseguir fazer já é uma grande conquista. (risos)
A sua geração foi uma espécie de primeira geração de tropicalismo aplicado.
Não. Vinte e doizinho, é tudo vinte e doizinho.
Antropofagia.
É, bicho. Hans Staden, Hans Staden. O cara que não foi comido. E, por não ter sido comido, a gente descobriu o canibalismo. E era gringo. (risos) A gente é isso. A gente não é nada, cara. E é tudo.
Quero te perguntar o que você tá ouvindo de novo.
Ah, muita coisa. Até porque ao longo do tempo vai criando essa confiança, os próprios criadores me mandam CDs, eu to sempre num débito gigantesco porque tenho uma pilha pra ouvir. E tô fazendo CD novo. E quanto tô fazendo CD, não dá pra ouvir. Acabei de masterizar o disco novo.
De estúdio? Inéditas?
É. Chão. Daqui a um mês a gente vai começar a falar dele. O disco tem algumas ousadias muito bacanas, vai dar pano pra manga pra gente conversar. Enfim… eu tava falando do quê?
De ouvir.
Ah, sim. Nesse momento que você tá criando é mais difícil ouvir, mas eu ouço sempre muito e sempre recebo muita coisa. E tem muita coisa bacana. É difícil pontuar um, dois ou três. Eu teria que ir setorialmente, regionalmente. E em cada região tem uns cinco ou seis. Não vou cometer esse pecado, cara. Mas sim, tem muita coisa bacana acontecendo. Acho que nunca democratizou-se tanto a produção a ponto de ter uma produção como essa, significativa mesmo. Lançam 70 discos mensais.
Você tenta ouvir?
Tento ouvir. Às vezes, é fogo. Já aconteceu de ter disco que eu gostei tanto que: “Porra, acabei de ouvir um disco da pesada e tal”. Eles: “Ouviu? Pô, lancei outro”. Então foi mais de um ano e meio até eu ouvir, às vezes demora. E os amigos furam a fila. “Pô, fulaninho lançou disco.” Aí, porra, fura a fila. (risos)
Quem teu seu telefone na agenda pra ligar e cobrar.
Justamente. “Eu vi o cara!” E mesmo pela amizade, pela curiosidade que muitos desses amigos me despertam mesmo. Quero ver o que estão fazendo.
Você tocou com a Tulipa em abril, no Conexão Vivo em Belo Horizonte.
A Tulipa eu já sabia do DNA dela, que é foda. (risos) A Tulipa eu acho uma artista. Eu gosto muito da Tulipa. Tulipa desenha, Tulipa é muito especial, cara. Ela tem essa amplitude na expressão. Luisa Maita foi outro disco belíssimo que eu ouvi. O Brasil é danado com mulheres. A gente sempre esteve muito bem com as mulheres.
E parece que não vai secar.
Não, só tá enriquecendo. Acho que é a água desse país, cara. Afeta as mulheres. (risos) Ou seremos um matriarcado? (risos)
Você falou em democratização e hoje em dia a indústria tá meio caída, as estruturas não são mais como eram, estão se reinventando.
Indústria? Que indústria? (risos) O que existe da indústria? As questões são muito maiores. E ninguém sabe, ninguém tem bola de cristal, cara. Tá tudo acontecendo com muita rapidez. Agora eu começo a ver uma luz no fim do túnel com o negócio do streaming, tá começando a acontecer e tá rolando uma resposta. A possibilidade de você ouvir o que quiser, na hora que quiser. Não tem download: você ouve. Quer ouvir como? MP3? Ou quer ouvir numa qualidade melhor? Então paga um preço por isso e tem sua rádio diária. Você faz sua programação e paga mensalmente ou pacote. Mas não me peça de graça a única coisa que eu tenho pra vender. Viva Cacilda Becker. (risos) Pra um artista aparecer hoje em dia não tem linha reta. Antigamente existia isso. Você é cantor, pega aquela rádio, toca não sei quantas vezes, faz um clipe no Fantástico. Tinha um circuito e você fazia.
O artista sabia o que fazer: “Vou precisar de uma gravadora, vou achar um produtor”.
No meu caso, não. Porque de alguma maneira essa indústria sorriu amarelo pra mim. E aí eu disse “Vou fazer, porra, não dependo de ninguém”. E foi assim durante toda minha vida. Não é litigioso nem belicoso, é a coisa do artesão. Eu também descobri uma maneira de fazer e não foi acadêmica, eu não estudei pra isso. Eu, na tentativa de documentar o que eu fazia, porque ninguém fazia, fui atrás de como produzir, de como arranjar, de como gravar melhor, quais os equipamentos pra fazer isso. Então é um artesão. Quando hoje a gente chega à conclusão de que o micro é o grande foco, pô, eu tô nessa faz tempo, cara. A minha vida foi assim. Então me sinto muito em casa. Tô no quintal de casa.
Hoje é tudo muito mais rápido, efeito Internet.
Hoje é tudo muito efêmero. Agora, objeto de desejo, a música como momento de celebração, todo mundo ouvindo e cantando, isso não vai mudar. Esse é sempre o pretexto e o objetivo de tudo: celebrar a música. A maneira a gente vai descobrindo enquanto vai fazendo isso. Mas é necessário. Cultura é o centro estratégico de qualquer nação.
Há centenas de milhares de anos podia ser igual a celebração. Sempre foi assim: juntar gente pra fazer as coisas.
Ritualizar. E aí a música é a melhor delas, é a melhor conexão. Eu digo isso porque eu tenho essa sensação não só dentro do Brasil, mas também fora. A gente tem uma hibridagem que é muito atrativa, que fala realmente pro mundo de hoje. Isso não é tropicalismo não, cara. A gente tem uma excelência que os caras estranham, ficam com medo. Enquanto o naïf é fácil aturar. Mas se você chega com excelência, com rigor técnico, os caras ficam “Cacete! Que porra é essa?” E eles estão começando a descobrir que a gente tem uma profundidade que música nenhuma do mundo tem.